Era dia 10 de fevereiro, Yelena cansada de tanto sofrer os mandos e desmandos de seu patrão e os assédios constantes, decide não ir ao trabalho naquele dia frio. As vezes ele falava tão estranhamente com ela, que era como se falasse russo. Yelena não entendia e aquilo era pretexto para começar a diminuir a garota, sob risos de alguns colegas e protestos reprimidos de outros.
– Calma pessoal. É só brincadeira – dizia Yan, o patrão daquela agência de viagens.
A única viagem que Yelena queria fazer, era no tempo, cada vez que ela era vítima de uma daquelas brincadeiras sem graça. A intolerância religiosa e cultural, eram gritantes com a sua descendência judaica.
– Os avós dela estavam presos no Campo de Belzec. Uma manhã depois de comerem um pão sírio mofado, eles olharam uma fumaça subindo de uma chaminé, numa casinha lá na frente, bem no horizonte. Eram os pais dela sendo torrados hahahahaha. Por isso ela é órfã.
O salário era baixo e ela só aceitou o trabalho porque havia se casado há poucos anos e o casal passava por problemas financeiros. Nessas horas, ela lembra do calendário. Dia 06 de abril de 2014. Dia da tragédia. Ela não se esquece desta data. Um momento histórico. Vulnerabilidade, medo, insegurança… mas, Dimitri pegara sua mão, olhara nos olhos e disse “sim”.
Apesar de diferente, o casamento judaico é bastante semelhante ao formato cristão, mas, mais bem definido, melhor delineado, não tão divino e com uma pegada mais contratual, mas ainda assim, sem cláusulas que prevejam a liberdade. Os lados se fundem e não mais se dissolvem, tipo os países que formaram a União Soviética. Tipo a Rússia tomando a Criméia da Ucrânia e anexando em seu território.
Dimitri trabalhava num posto de combustíveis não tão conhecido da Rede WOC, com um salário médio. O casal não tinha uma vida de regalias. Ele não sonhava muito, tinha os pés no chão, como tropas de exército, mas tinha suas metas e estratégias audaciosas. Já ela, voava como aviões do tipo Tupolev, talvez por causa do signo, mas não acreditava nesse tipo de coisa. Tinha vontade de ser professora. Se inspirava no método da psicanalista infantil Sabina Spielrein.
Assim, o jovem casal com condições modestas, lutavam como soldados que não se rendiam, resistindo dia após dia, contra um sistema, para pagar a mensalidade da casa, do carro, da motinha, as contas básicas e os sorvetes ou caldos em época de frio, como era agora, dia 10 de fevereiro, quando Yelena faltou ao trabalho sem avisar a empresa ou mesmo o marido, talvez temendo um conflito ou mesmo uma guerra.
Ela havia ido fazer um teste numa escola para ser admitida como professora. Ganharia três vezes mais e o casal deixaria enfim de passar perrengues e de ser um casal de condições modestas, além de poder fazer o que gosta, como profissão, o que é o mais significativo nisso tudo. Soube o resultado do teste ali mesmo, pela boca da pedagoga chefe, a diretora, senhora Zaya, que gostou muito de Yelena. Se encantou. Era a pessoa certa para a Escola Minsk. O acordo foi assinado e o início do trabalho em sala de aula, marcado para dia 28 de fevereiro. O último dia do mês.
Yelena saiu dali radiante, exalando o aroma do amor-próprio. Iria iniciar uma nova vida, uma nova era. Poderia comprar um belo presente de aniversário de casamento, já que seria o oitavo ano daquela repetição. Tantas coisas passavam pela sua cabeça. Tantas imagens, planos e desejos.
E por falar em desejo, foi até ao posto onde o marido estava, contar-lhe a novidade. Dimitri se assustou ao vê-la, mas pelo sorriso sem máscara, deveria ser coisa boa, porém, ela não lhe contou.
– Meu bem, quando você sair, vamos a um parque, tomar um vinho belga, sentar um pouco. Tá bem frio, mas quero lhe contar uma novidade que vai mudar nossas vidas. Quero que seja especial.
O homem que sempre foi calmo, passou mal o dia todo com sinais de ansiedade, pensando que a mulher estaria grávida, num dia em que ele só queria chegar em casa, tomar uma sopa com batatas e assistir ao jogo do Shaktar, seu time europeu preferido, com jogadores brasileiros. Foi ao encontro com o rosto arroxeado, não de frio, mas sim de preocupado.
Juntos se divertiram, riram e se beijaram próximo a um quiosque do parque ao som da música “C’era un regazzo che come me amava i Beatles i Rolling Stones”, na voz do compositor Gianni Morandi.
– Agora essa é a nossa música – Dizia Dimitri. Beijaram sorrindo no Parque da Catedral de Santa Catarina e em casa fizeram amor com tanto amor, que era bem provável que Yelena tivesse agora, realmente grávida.
No dia seguinte, Yelena chamou o pai e foram a agência de viagens onde ela trabalhou até o dia 09 de fevereiro. Temia o patrão com seu comportamento nazista. A destituição presidencial de uns anos atrás, dividiu o país em dois. Um lado concordava com o líder nacional e o outro lado dizia que foi golpe. Assim, o presidente eleito que governa em 2022, mantém essa polaridade e algumas manifestações populares acusavam o chefe da pátria amada de ser nazista, chamaram-no de genocida, mas o outro lado, não enxerga dessa forma.
Espera-se que um cristão jamais deseje a morte de um semelhante, assim como um judeu jamais defenda o nazismo. Mas nesse mundo globalizado e nesse jogo geopolítico, os negócios falam mais alto que os valores humanos. Tudo tem um preço e enquanto se negocia, cresce a força dos grupos milicianos no país.
Agora em casa, curando as feridas emocionais, Yelena tem muitos dias para descansar e ir se preparando para as aulas. Na TV sempre vê o presidente americano, Joe Biden, dizendo que “a Rússia irá invadir a Ucrânia” e paralelo a isso recebeu no Telegram uma manchete dizendo que Bolsonaro evitou essa guerra. Fica confusa, mas ignora, pois não tem nada a ver com isso. Ela vota, quando tem eleição.
Faltavam 4 dias para começar as aulas como professora. Era madrugada de quinta, dia 24. Yelena estava com dificuldades para dormir, ansiosa pelo que estava por vir. Ouviu uns barulhos estranhos. Talvez alguém estivesse tentando invadir. O cachorro do vizinho não parava de latir. Ela chama Dimitri, para caso seja necessária uma intervenção. Ele olha pela janela e vê que alguns vizinhos também acordaram e estão incomodados. Os barulhos cessam, mas por via das dúvidas é melhor chamar a polícia. Não há sinal no celular.
– Vamos verificar as portas e voltar a dormir.
– Tentar, no meu caso.
As luzes piscam! Um clarão lá fora. O raio sempre vem antes do trovão. Era uma explosão. Uma bomba termobárica. A cidade de Kherson, perto da fronteira da Crimeia, nas margens do Mar Negro, era bombardeada por mísseis de cruzeiro. Era verdade o que falavam na TV. A Rússia invadiu a Ucrânia e pelo menos 30 bombas foram lançadas na cidade.
O dia 24 foi o mais longo. Dimitri saiu para o trabalho, mas logo voltou para casa. Foi abordado por um homem do governo ucraniano que estava acompanhado por civis armados que o obrigaram a compor o grupo e ser um soldado amador, numa guerra profissional. Sem escolhas, voltou, pegou seus pertences e se apresentou a Secretaria de Defesa. Ele que nunca havia atirado com um revólver, teria agora uma AK-47 nas mãos. Uma metralhadora.
– Sempre fui lutador, mas nunca desejei ser soldado.
Na cabeça de Yelena, passava a música “C’era un regazzo che come me amava i Beatles i Rolling Stones”, enquanto beijava o marido, mas dessa vez, chorando e a única nota que ouviam, vinha do estremecer do chão.
A casa do casal, não tinha bunker e no dia seguinte, já não dava mais para ficar ali. Além da agressão militar russa, havia o risco de bandidos oportunistas e saqueadores se aproveitarem da situação de Lei Marcial e os abusos sexuais realizados por oficiais das forças armadas, comuns em operações militares internacionais.
Seus pais vieram buscá-la no dia seguinte, sexta, 25 de fevereiro de 2022. A cidade estava destruída. Passou do lado da escola onde começaria a ser professora dali a 3 dias. Não haveria aula, a escola estava parcialmente destruída. A diretora, uma coordenadora e uma menina de 7 anos haviam morrido no ataque. Yelena, mesmo mais sensível pela TPM não conseguia chorar. Não dava para processar aquilo. Tudo mudou do nada.
Pouco adiante um helicóptero MI-24, conhecido como “Tanque Voador”, dispara seus foguinhos que ela, anestesiada, até achou bonitinho. Alguns segundos depois, uma explosão magnifica há uns 3 quilômetros dali. O pai no piloto, ruma para o posto WOC, o que certamente iria causar na filha, uma grande comoção. Mas era o posto mais próximo no caminho de casa.
– Dimitri!
No lugar do posto haviam labaredas enormes e muita fumaça. O helicóptero disparou contra um alvo mas também atingiu o estabelecimento e todos que ali estavam, morreram. Se Dimitri estivesse trabalhando ali hoje, também teria morrido. Mas será que Dimitri está vivo?