Um homem negro acusado de fazer vítimas mulheres. Uma delas, também negra.
Homens negros são vítimas do sistema carcerário e vítimas fatais do Estado.
Mulheres são as maiores vítimas de violência sexual.
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E o que tudo isso diz do caso? Praticamente nada.
Quem são essas pessoas negras?
Silvio de Almeida, ex-ministro, advogado, intelectual, pai e esposo,
casado, referencia pública no enfrentamento ao racismo.
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Quem acusa? Mulheres anônimas e Anielle Franco, irmã de Marielle Franco,
ministra, ativista, jornalista, professora, casada.
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E o que isso diz do caso? Quase nada.
Pra além das dimensões públicas quem são essas pessoas?
O que fazem quando não estão trabalhando?
Quem são para além das pessoas públicas?
Como amam e se divertem? Como são como gestores?
Como são com amigos? Desconhecidos? Com as pessoas que os servem?
Como é Silvio em casa? É um bom marido?
É uma pessoa gentil?
Seria capaz de assediar?
Eu não sei.
E você provavelmente também não.
E mesmo sabendo isso nada diria do caso.
E o perturbador de lidar com casos assim
é que geralmente só temos isso:
históricos pessoais que as tornam passíveis – ou não – de serem vistas como vítimas
ou agressores legítimos.
E escolhemos lados marcados pelo histórico individual
(eu conheço, acredito em fulano, sei que não seria capaz)
e pelo social (mulheres são silenciadas e deslegitimadas a todo tempo por suas denúncias).
E tudo marcado pelos nossos afetos, identificações e ideais, por quem nos sensibilizamos.
E tudo isso é mediado por valores racistas e misóginos.
Escolhemos num ato de fé
e teremos que sustentar tanto esse posicionamento diante dos confrontos
que provavelmente se tornará uma certeza.
Mas saber mesmo a gente não sabe.
Ouviremos histórias.
O número delas nos induz a acreditar.
Mas e quando é só uma?
A autoridade e convicção da fala dá credibilidade,
o que é sempre favorável aos intelectuais
e desfavorável as confusões das vítimas,
que nunca estão tempo certo,
têm a reação certa ou as palavras certas.
São sempre muito suspeitas.
O caso será investigado.
E ainda assim, provavelmente, pouco saberemos.
A natureza da justiça pra esses casos é profundamente limitada.
Dificilmente casos de assédio sexual deixa prova.
Acontecem em locais privados ou locais públicos seguros para os violadores.
E o comum, mesmo em casos com provas como o da Mariana Ferrer, é que nada aconteça.
Por vezes há testemunhas indiretas.
Mas são confiáveis o bastante?
Possuem o mesmo estatuto de credibilidade do acusado?
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Uma inocência possível é por falta de provas ou por uma inocência de fato?
E falo isso não pra recusar o Direito, mas pra dizer dessa contradição.
Só temos a “justiça” pra averiguar, mas a justiça não é confiável.
Mas precisamos dela pra defesa da barbárie.
Mas ela também é agente da barbárie. Como proceder?
Melhor assumir imediatamente qualquer denúncia como verdadeira?
Numa crença absoluta e imediata nas mulheres?
Só que mulheres podem mentir.
Disputamos poderes, nos ressentimos e também podemos jogar baixo.
E onde fica o direito a defesa? Esse não é um marco civilizatório?
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Falo isso não pra descredibilizar as mulheres.
É mais provável a impunidade que a mentira. O descrédito das vítimas que a mentira.
É uma sociedade cruel com as mulheres.
Só que ainda assim há limites e contradições também colocadas.
Mais vale o risco e assumir o lado mais frágil e descredibilizado?
E não assumir acaba sendo assumir o lado dos agressores.
Uma vez que o antagonismo se coloca é meio impossível ficar de fora.
E comumente quem sai perdendo são as mulheres. Em especial, mulheres negras.
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E o que isso diz do caso em si? Pouco, muito pouco.
Diz da falta de garantias nas pessoas.
Das contradições pessoais e sociais.
Do enorme problema de análises que tomam identidade como o todo.
Diz de coisas difíceis e coisas muito tristes.
Mas do caso mesmo diz muito pouco.
E é com esse pouco que geralmente enquanto movimentos e indivíduos
temos que agir e nos posicionarmos.
E estar ciente dessas contradições talvez nos permita desenvolver respostas melhores
ou ao menos reconhecer que elas precisam ser esboçadas.
Respostas que deem conta do contraditório
e que sejam capazes de verdadeiramente acolher, enfrentar e prevenir violência contra as mulheres.
Respostas que vão no sentido da criação do mundo que a gente quer.
Karina Oliveira Martins é psicóloga e psicanalista,
formada na Universidade Federal de Goiás – UFG com mestrado pela mesma instituição.
Atende na clínica particular online.
Escreve sobre saúde mental, subjetividade humana e questões políticas e sociais