Não é raro ver homens chorando por futebol enquanto encontram dificuldades para expressar sentimentos em seus relacionamentos
Publicado em 28 de dezembro de 2025
por Karen Rodrigues
Em um momento em que o debate público se volta às apostas esportivas, a violência contra a mulher segue acontecendo de forma persistente — e, muitas vezes, silenciosa. Trata-se de um fenômeno ainda amplamente subnotificado, que ganha contornos ainda mais preocupantes quando associado a grandes eventos esportivos, emoções intensas e padrões culturais profundamente enraizados.
Nesse cenário, também se observa o fortalecimento de discursos como os chamados “red pill” e de uma nova onda de supostos “direitos dos homens”; narrativas que, sob o pretexto de igualdade, acabam por legitimar a misoginia e a reação à perda de privilégios historicamente garantidos pelo patriarcado. Esses discursos não surgem isoladamente: eles dialogam com valores de dominação masculina e desigualdade de poder entre os gêneros, ainda presentes na sociedade.
Por outro lado, há iniciativas importantes que caminham na direção oposta. O blog Papo de Homem, por exemplo, apresenta uma proposta de desconstrução da masculinidade hegemônica, sendo gerido por homens aliados ao movimento feminista e comprometidos em discutir formas mais saudáveis de ser homem no século XXI. Da mesma forma, o e-book “Futebol e violência contra a mulher”, desenvolvido pelo Instituto Avon em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é uma iniciativa psicoeducativa acessível, que contribui para ampliar o debate e a conscientização sobre o tema.
Pesquisas internacionais mostram que o aumento do consumo de álcool, aliado a altos níveis de excitação emocional em dias de grandes partidas, pode intensificar a frequência e a gravidade de situações de violência doméstica já existentes. No Reino Unido, estudos realizados por pesquisadores da Universidade de Bristol indicam que, em dias de jogos da Seleção da Inglaterra, os registros de violência doméstica aumentam, em média, 26% em casos de vitória ou empate e 38% em situações de derrota. No dia seguinte às partidas, o risco permanece elevado, com aumento adicional de 11%. Esses dados motivaram campanhas de conscientização, como as promovidas pela organização Women’s Aid, que alertam para o perigo no lar durante grandes eventos esportivos.
Como destaca a diretora-executiva da Women’s Aid, Farah Nazeer, a violência contra as mulheres deve ser compreendida como um espectro, que vai desde piadas sexistas até crimes graves e assassinatos. A naturalização de comentários e atitudes misóginas contribui para a manutenção de uma cultura que permite a humilhação, o controle e o abuso.
No Brasil, os dados seguem a mesma tendência. Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicada em 2022, analisou a relação entre os dias de jogos do Campeonato Brasileiro e os índices de violência doméstica. Os resultados mostram que, no dia em que o time da cidade entra em campo, o número de ameaças contra mulheres aumenta 23,7%, enquanto os casos de lesão corporal dolosa no contexto de violência doméstica crescem 20,8%, em comparação com dias sem jogos.
A coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutora em Psicologia, Juliana Martins, ressalta que o futebol, em si, não é a causa direta da violência. Segundo ela, o aumento tende a ocorrer principalmente em situações de grande rivalidade entre times, associadas a uma forte expectativa de vitória que acaba frustrada. O futebol funciona, nesse contexto, como um catalisador de valores já existentes. Como aponta a pesquisadora, elementos como virilidade, agressividade e violência emergem como respostas socialmente aprendidas diante da frustração.
As explicações para esse fenômeno atravessam tanto o nível individual — envolvendo agressividade, dificuldades na regulação emocional e frustrações — quanto o nível social, relacionado à construção das masculinidades, às interações sociais e à oferta ampliada de bebidas alcoólicas. O futebol não está apartado da vida social: ele é parte constitutiva dela. Vitória e derrota fazem parte da experiência humana, e a diferença está na forma como se aprende a lidar com essas emoções. Não é raro ver homens chorando por futebol, enquanto encontram grandes dificuldades para expressar sentimentos de maneira saudável em seus (outros) relacionamentos.
“Não é raro ver homens chorando por futebol, enquanto encontram grandes dificuldades para expressar sentimentos de maneira saudável em seus (outros) relacionamentos.”
Karen Rodrigues
Diante disso, campanhas de conscientização em equipes esportivas, estádios e eventos esportivos podem representar estratégias importantes de transformação cultural. No entanto, não basta entrar em campo no mês de agosto com faixas contra a violência e limitar as ações a datas simbólicas. É fundamental investir em ações preventivas contínuas. Nesse processo, a Psicologia — nas áreas Social, Clínica e do Esporte — desempenha um papel central, ao promover a conscientização, a educação emocional e a formação ética de seres humanos atletas, torcedores e da sociedade como um todo.
Por fim, é essencial reforçar: a violência contra a mulher não é um problema privado, é uma questão social e deve ser enfrentada coletivamente. Em caso de violência, não hesite. Ligue 180, procure a DEAM mais próxima, peça ajuda, bata panela na janela se for necessário. Denunciar é um ato de proteção, de coragem e de transformação social.
Futebol e violência contra a mulher [livro eletrônico] / coordenação Daniel Cerqueira. 1. ed. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Instituto Avon, 2022. PDF.
Karen Rodrigues é psicóloga formada em 2011, especialista em Psicologia do Esporte e do Exercício pela Ceppe-SP, Psicologia no Futebol, pelo Futebol Interativo-SP, e apaixonada por esportes; atende online demandas de atletas amadores e profissionais e demais demandas de saúde mental